Desafafios aos pais contemporâneos
Ana Paula Cury
Em tempos antigos, na infância da humanidade, o homem foi
guiado, a princípio, diretamente por seres espirituais, e mais tarde por
líderes espirituais que estavam abertos à inspiração e direção de seres mais
elevados. Estes que se converteram em guias de seus semelhantes, desenvolveram
a capacidade para isso nos assim chamados locais de mistérios. Um longo e
rigoroso aprendizado levava por fim à chamada iniciação – o coroamento de um
processo que despertava gradual e progressivamente capacidades de percepção
supra-sensível, permitindo-lhes conhecer as diretrizes a partir das quais se
devia realizar o esplendor de uma época cultural.
Rudolf Steiner descreve todos os mistérios pré-cristãos como
sendo mistérios da sabedoria. Todos os conteúdos destes mistérios estavam
direcionados no sentido de proporcionar ao discípulo um acesso à sabedoria
oculta da qual surgira toda a Criação. A antiga iniciação estava orientada para
o passado – ela buscava uma volta à fonte da qual fluiu a sabedoria inerente a
toda a natureza e obra divina. E assim, recebendo o que emanava dos deuses como
sabedoria, estes líderes podiam ordenar toda a vida social e cultural
impulsionando seus semelhantes conforme o que cabia realizar para cumprir a
meta daquele estágio evolutivo.
Hoje, já não é tempo de se confiar e deixar-se guiar por uma
autoridade externa. O ponto de partida para o ser humano é sua capacidade
intelectual altamente desenvolvida. O pensar claro, autônomo, em que o eu
vivencia a si mesmo. Ele pode, em liberdade, tomar nas mãos o próprio
desenvolvimento, formar seu próprio mundo social e até transformar a natureza.
Nesta época o ser humano é convocado para o empreendedorismo, para a tomada de
iniciativas, para assumir responsabilidade pessoal. Para a atividade como
artista (que de modo criativo, forma algo novo). Essas mencionadas
características têm em comum a ação, o colocar em ação a vontade própria.
Desse ponto de vista, é compreensível que Rudolf Steiner
tenha falado sobre os novos mistérios como mistérios da vontade. Os antigos
mistérios da sabedoria entraram em decadência e perderam sua força inspiradora
no decorrer da evolução. O que antes era ainda revelação viva morreu na
tradição e no dogmatismo. Se antes todas as áreas da vida possuíam uma
orientação espiritual com uma qualidade que reintegrava o homem à sua origem, à
sua essência, com o início da época moderna e a ruptura da consciência que
passa a ser orientada para o mundo sensorial exterior, a orientação espiritual
se perdeu. A cultura já não é mais inspirada pelos centros de mistérios, onde
se abrigava a antiga espiritualidade; ela recebe seu conteúdo daquilo que as
pessoas, por suas próprias forças, desenvolvem em termos de ideias. Em certo
sentido, os centros de pesquisa das universidades assumiram a direção que
outrora era dada pelos antigos mistérios. Eles indicam com sua ciência – e com
a continuação desta: a técnica – a direção da sociedade.
Sem uma nova orientação para o espiritual, esse
desenvolvimento nos conduziu a um materialismo cada vez maior. “A combinação de
ciência e máquinas ameaçará a civilização com três formas de destruição se não
nos unirmos o suficiente e nos voltarmos para o supra-sensível.” disse Steiner.
“Estas são as coisas que têm tido um efeito progressivamente intenso desde
meados do século XV e estão agora roubando aos seres humanos sua própria
humanidade. Se as pessoas levarem o pensamento mecanicista e a indústria ao que
resta da vida, então seus espíritos tornar-se-ão mecanizados, suas almas
dormentes e vegetabilizadas, e seus corpos animalizados.”
Ele considerou sua tarefa indicar caminhos para essa nova
orientação rumo ao espiritual. Mas agora não mediante uma volta ao passado, e
sim graças a uma vontade espiritual para o futuro.
Em toda parte onde respostas para perguntas desta época são
procuradas com base na Antroposofia, essa vontade espiritual é despertada. Ali
os novos mistérios se tornam atuais, e são mistérios da vontade.
As provas iniciáticas que pertencem a este caminho de
aprendizado nesses mistérios não sucedem em templos secretos e distantes, e sim
na vida diária, em todo contexto em que se age e onde tem lugar o
relacionamento com outras pessoas: na família, no trabalho, no trânsito, na
vida comercial, etc. Em todas essas situações de vida a coragem é exigida, e passos
são dados em direção a uma iniciação da vontade.
Resta-nos agora indagar, como o despertar para a busca de um
caminho interior no qual se procure cultivar a própria essência, a própria
espiritualidade se relaciona com a tarefa de educar os filhos?
“Toda educação é autoeducação, e nós na qualidade de
professores e educadores, em realidade formamos apenas o ambiente em que a criança se educa a si
mesma. Devemos propiciar-lhe o ambiente mais favorável possível, para que junto
à nós ela se eduque da maneira como deve ser educada por seu destino interior.”
Rudolf Steiner
Para sermos pais conscienciosos, precisamos fazer um
trabalho interior conosco mesmos aliado ao trabalho exterior de criar e
proteger nossas crianças. O conselho técnico que podemos aprender nos livros
para nos ajudar no trabalho exterior precisa ser complementado por uma
autoridade interna que só podemos cultivar e conquistar em nós mesmos por meio
da lapidação de nossa experiência pessoal. Esta autoridade interna só se
desenvolve quando nos damos conta de que, apesar de todos os acontecimentos que
escapam ao nosso controle, continuamos sendo primordialmente através das
escolhas que fazemos em razão desses fatos, e através do que partiu de nós
mesmos, os autores de nossas vidas. Ao perceber isso, podemos acabar
reconhecendo o quanto é importante para nossos filhos e nós mesmos assumir
responsabilidade pela forma como vivemos nossa vida e pelas consequências das
escolhas que fazemos.
A autoridade e autenticidade interiores podem ser extraordinariamente
desenvolvidas se fizermos esse trabalho interior. Nossa autenticidade e nossa
sabedoria aumentam quando estamos conscientes das coisas que fazemos. Quando
temos nossa atenção presente em cada pensamento, ato ou palavra. Com o tempo,
podemos aprender a conhecer mais profundamente cada um de nossos filhos e saber
o que precisam e tomar a iniciativa de descobrir formas apropriadas de
educá-los promovendo seu crescimento em todos os sentidos. Também podemos
aprender a interpretar os sinais diversos e muitas vezes enigmáticos que ás
vezes eles nos enviam através de seu comportamento e confiar em nossa
capacidade de encontrar uma maneira adequada de agir. Atenção, exame e
consideração constantes são essenciais neste caminho.
Podemos nos tornar pais intencional ou inadvertidamente,
mas, seja como for, a paternidade e a maternidade são uma vocação. Na
realidade, trata-se de nada menos que uma disciplina espiritual rigorosa – a
busca do ideal de realização do que há de mais profundo e verdadeiro em nossa
natureza como seres humanos. O simples fato de nos tornarmos pais é um estímulo
contínuo para a manifestação do que temos em nós de melhor, mais amoroso, sábio
e carinhoso, para sermos as melhores pessoas que pudermos ser.
Lidar com filhos anuncia todo um conjunto novo de
solicitações e mudanças em nossas vidas, exigindo que renunciemos a muitas
coisas conhecidas e que assumamos outras tantas desconhecidas. Em geral
contamos apenas com a bagagem que trazemos de nossa infância, tanto a positiva
quanto a negativa, para enfrentar o território desconhecido de ter filhos e
educá-los.
E assim como na vida quando nos vemos diante de pressões
familiares, sociais e culturais para observar normas em geral tácitas e
inconscientes, e de todas as tensões inerentes ao exercício da paternidade,
apesar de nossas melhores intenções e do amor que sentimos por eles, muitas
vezes estamos ligados no piloto automático. Além disso, quanto maior for nossa
preocupação com o tempo, a nossa pressa, tanto menor será o nosso contato com a
riqueza, o viço do momento presente Esse momento pode parecer demasiado comum,
rotineiro ou fugaz para merecer atenção, e vivendo assim, facilmente caímos na
armadilha do automatismo ilusório, enquanto mantemos a crença de que tudo o que
fazemos por eles é certo.
Uma atuação automática, não permeada pela atenção consciente
pode causar danos profundos ao desenvolvimento da criança. A atitude
inconsciente em relação à educação dos filhos também conspira para deter nosso
crescimento potencial como pais. Essa inconsciência traz, muitas vezes,
tristeza, oportunidades perdidas, sofrimento, ressentimento, censura,
sentimentos de autodesvalorização, e outras coisas mais. Se formos capazes de
permanecer despertos para os desafios e a vocação da paternidade/maternidade,
isso não precisa acontecer. Ao contrário, podemos usar todas as ocasiões que
surgirem com nossos filhos para derrubar barreiras em nossas próprias mentes,
para enxergar com mais clareza dentro de nós mesmos e estar presentes para eles
de modo mais efetivo.
Um dos grandes desafios de se educar filhos em nossa época
vem do fato de vivermos numa cultura que não valoriza muito o ofício da
maternidade como trabalho válido e honrado. Considera-se perfeitamente
aceitável as pessoas dedicarem-se integralmente às suas carreiras ou às suas
relações, ou círculos sociais, mas há bem pouco apoio, às vezes até críticas
veladas ou mesmo abertas à postura de quem escolhe dedicar-se aos filhos.
A sociedade como um todo, com seus valores e instituições
que moldam e ao mesmo tempo refletem o microcosmo de nossas mentes e valores
individuais,contribui muito para desvalorizar o trabalho de educação das
crianças. Quem recebe os maiores salários no país? Certamente não quem trabalha
em creches, nem os professores, cujo trabalho tanto apóia a tarefa dos pais.
Onde estão os exemplos, as redes de apoio, o trabalho compartilhado e o
trabalho em meio expediente para mães e pais que não se contentam em ficar
apenas umas poucas semanas com seus filhos recém-nascidos em casa? Onde estão
os subsídios para jovens pais, os cursos de pais, programas adequados de
licença paternidade e maternidade, que, por sua prevalência, nos mostram que o
trabalho de educar os filhos é da maior importância e é altamente valorizado
pela sociedade?
Certamente há coisas boas e razões para se ter esperança. Há
também quem veja sua função de pai/mãe como uma missão sagrada, e encontra
maneiras criativas e calorosas de orientar seus filhos e cuidar deles, muitas
vezes enfrentando grandes obstáculos e dificuldades. Existem também os que se
ocupam em criar programas e serviços de orientação às famílias, oferecer
conhecimento, alternativas saudáveis de recreação, e assim por diante.
Mas os problemas são desconcertantes e estão criando um
ambiente social em que é cada vez mais difícil para as famílias educar filhos
saudáveis. Manifestações tangíveis e diárias de amor, apoio, energia e
interesse por parte de adultos de carne e osso e respeitados estão-se tornando
cada vez mais raras hoje em dia.
Porém, se de um lado somos sujeitos a grandes forças sociais
que moldam nossas vidas e as vidas de nossos filhos, por outro, também temos a
capacidade como indivíduos de escolher conscientemente como vamos nos
relacionar com as circunstâncias e com a era em que vivemos. Todos nós temos o
potencial para traçar nossos caminhos, para viver com mais atenção e
intencionalidade, e para tentar ver e honrar as profundas necessidades
espirituais de nossos filhos e as nossas da melhor forma possível. Traçar um
caminho como esse para nós fica mais fácil quando temos uma estrutura maior
como parâmetro e entendemos o que estamos fazendo e o que precisa ser feito –
uma estrutura que pode nos ajudar no caminho, mesmo que as coisas estejam
sempre mudando e nossos próximos passos nem sempre sejam evidentes. O
conhecimento científico-espiritual pode fornecer parte desta estrutura. A
atenção pode complementá-lo.
Uma relação atenta com a integridade de nossa vida – isto é,
com as nossas experiências interiores e exteriores – é uma alternativa
profundamente positiva e prática ao modo de operação no piloto automático que
adotamos tantas vezes sem sequer perceber. Isso é particularmente importante
para nós pais, enquanto fazemos malabarismos para tentar atender a todas as
exigências do dia-a-dia e trabalhamos para sustentar nossos filhos e lhes dar
aquilo de que precisam num mundo cada vez mais desgastante e complexo.
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